O EFÊMERO E O ETERNO
O
balanço range, mas o ramo não verga. O
rosto passa, ora na sombra, ora no sol. Um cheiro de umidade e de luz. Orvalho
por cima das violetas. Lesmas por baixo das folhas. Fogem lagartixas pelos
tijolos. Uma cigarra desabrocha fogo, de repente, sobre a resina dos cajueiros.
Passam borboletas brancas em grupos: ramos de flores voando.
A vida vibra. Posso
sentir-lhe a pulsação neste trecho de Olhinhos
de Gato. A cena está diante de nós com todos os detalhes, vibrando ao mesmo
tempo. As cores, os movimentos, os bichos tomam nossos sentidos de tal forma
que nos sentimos lá, nesse mundo encantado, repleto de vida, beleza e poesia.
Assim é o livro Olhinhos de Gato de
Cecília Meireles.
Em um primeiro momento,
o livro pode parecer uma história infantil, principalmente porque a escritora
dedicou-se a essa categoria literária. Entretanto, é um livro que reflete sobre
assuntos difíceis como a morte, memórias e família. Seu encanto é justamente
tratar temas tão difíceis, de maneira tão poética. É, a narrativa da autora,
permeada pelas suas lembranças da infância, marcada por perdas de entes
queridos. Quem, no entanto, espera encontrar no livro atmosfera pessimista e
sinistra, se engana. “A vida é pobre, o tempo é triste, mas a música embala os
dias, desde a manhã até a noite”. Essa frase do livro demonstra o clima
otimista e confiante que perpassa toda a narrativa.
Cecília Meirelles
perdeu o pai três meses antes de nascer e a mãe, quando tinha apenas três anos.
Dois irmãos pequenos também faleceram antes da mãe. Foi criada pela avó materna
que, junto com uma tia, foram as únicas sobreviventes da família. Mas ao
contrário do que possa parecer, sua relação prematura com a morte fê-la compreender
a vida em profundidade; dedicar-se ao que realmente importa, pela consciência
da transitoriedade. Foi o que contou em uma entrevista[1]:
Essas
e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais,
mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte
que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para
outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes cheia de violência. Em
toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção
ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo de minha personalidade.
Creio que isso explica tudo quanto tenho feito, em Literatura, Jornalismo,
Educação e mesmo Folclore. Acordar a criatura humana dessa espécie de
sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em
profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas por uma
contemplação poética afetuosa e participante (MEIRELES, 1983)
Olhinhos
de Gato foi publicado, originalmente, em capítulos na
Revista Ocidente, de Lisboa, de 1938
a 1940. É uma narrativa autobiográfica, que por tantos acontecimentos trágicos,
espera-se sombria, porém o que se tem, é uma narrativa poética, cheia de vida,
cores e pulsação. São as impressões de uma menina cheia de imaginação e
percepção da vida, que continua e vibra em seu redor. Faz ponderações sobre a
existência e as relações humanas. E, como não poderia deixar de ser, fala
também do fim da existência.
Fala da morte de uma
maneira sutil e delicada. Descreve as roupas do guarda roupa que um dia pertenceram
a alguém e hoje estão lá, lembrando esse alguém, que foi caro. Da mesma forma,
com os objetos dispostos pela casa, e os animais que “ comendo, crescendo- mas
sempre dormindo. Viajando como nós todos para a morte, mas ainda mais
indefesos. E tudo morre! Tudo?” A morte para ela é uma consequência natural da
vida. Todos iremos nos encontrar com ela, um dia. Assim devemos viver
plenamente, pois cada ser tem uma missão na vida, mesmo que seja um simples caracol ou uma formiga. Assim, morte e vida se
entrelaçam e só quem realmente compreendeu a razão da vida olha o fim com
naturalidade:
E
a terra que ninguém observa muito, é igualmente um espantoso mundo repleto de
maravilhas aparentes e ocultas. Ninguém dá conta dos filamentos de erva que uma
só gota de orvalho, às vezes prostra. Ninguém se lembra da solitária cintilação
de um grão de areia. Ninguém vê que o
úmido caracol e a ruiva formiga cumprem seu inexplicável destino expostos
miseramente ao risco dos imensos pés distraídos que passam...
Precisamos enxergar a
beleza da vida pulsante ao nosso redor, na natureza. Conseguir ver a beleza das
coisas mais sutis e simples é um dom que nos ajuda a compreender o caminho
natural em direção à morte. A natureza é, ainda, uma chave para a compreensão
de Deus:
‘As
invenções de Deus!’ – dizia com ternura. Mas não era só das nuvens que falava:
as plantas, as pessoas, as estrelas – tudo eram invenções, também; outras
invenções...Deus inventava, escondia-se. E a gente dava para gostar de suas
invenções e esquecia-se dele. Ah! Mas só ele valia a pena... Iam procurá-lo nos
livros, nos altares... como se ele pudesse estar num lugar certo...E falavam
por ele! Como se por ele alguém pudesse falar...
Das criaturas de Deus,
parece que os animais mostram-se, sem medo. As criaturas humanas e suas
relações são mais complicadas. “ Os animais e plantas jazem, simples, sem vestuário,
com uma expressão tão sincera de si mesmos que sempre se pode saber o que estão
querendo ou estão sentindo”. Já com os homens, há dificuldade em conhecê-los, pois
eles escondem o que sentem, mentem e vivem de aparências. “Depois há as
criaturas humanas. As criaturas vestidas e penteadas, que acordam, falam andam
riem-se, choram, trabalham, divertem-se e nunca se mostram inteiramente, em
nenhum desses momentos. Isso é particularmente amargo." Atualmente essa
angústia de viver das aparências é muito evidente na sociedade. Vivemos na
superfície de nós mesmos, nas relações e esquecemos-nos de procurar nossa
essência e demonstrá-la em nossas relações. Onde deixamos nossos valores
eternos e espirituais? E onde os trocamos por valores efêmeros? Com isso, colhemos solidão e angústia.
Sua obra é repleta das
dualidades da vida. A percepção barroca do mundo, onde estamos constantemente
entre os opostos. Em luta com dois caminhos que devemos escolher. E o
verdadeiro no ser humano não está nas
aparências, mas no interior profundo: “tudo no mundo é duplo: visível e
invisível. O visível, de resto, interessa sempre muito menos."
A autora ainda brinca
com a memória através dos álbuns de retrato da família. Desfilam parentes longínquos
e próximos, muitos que já se foram. De repente, ela se depara com a imagem de
uma menininha de olhos de gato. Diante de seu retrato, se sente diferente. E
percebe que aquela menininha não existe mais. Ela também estava morta, porque
ela era outra. E como ela estava morta, mas também sobrevivera, quem sabe não
existia, ainda, algo dos outros que haviam partido?
Em sua narrativa,
segunda a autora, há muita influência das histórias que ouvia quando criança da
avó Boquinha de Doce e de sua babá Dentinho de leite. Sua avó, uma
portuguesa, nascida em Açores conhecia muito do folclore açoriano e sua babá brasileira,
contava-lhe histórias do folclore brasileiro. A narrativa é repleta de
misticismo, espiritualidade e superstições influências das duas mulheres com quem
conviveu na infância.
Assim, apresentei
apenas alguns aspectos de Olhinhos de
gato. Acredito que o leitor possa observar, ainda, muitos outros pontos
interessantes. No entanto, o que mais nos impressiona na narrativa é sua poesia
e delicadeza para falar de coisas tão sérias. Essa forma de escrever encanta o
leitor que se deleita com as doces e
belas imagens criadas pela sabedoria de suas palavras.
REFERÊNCIAS
MEIRELES, Cecília.
Olhinhos de Gato. São Paulo: Editora Moderna.1983;
MEIRELES, Cecília. Flor
de Poemas.Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983
[1]
Entrevista concedida a Rede Manchete, trecho disponível em Notícia Biográfica
no livro Flor de Poemas.
Comentários
Postar um comentário